05/04/2012

O Uso da Contemplação - Octavio Paz





...O prazer que o artesanato nos dá é uma dupla
transgressão: contra o culto à utilidade e contra o culto à
arte. Nossa relação com o objeto industrializado é funcional;
com a obra de arte, semi-religiosa; com a peça de
artesanato, corpórea. O artesanato se localiza bem no meio
desses dois pólos: como o desenho industrial, ele é
anônimo, mas não impessoal; comparado à obra de arte,
ele enfatiza a natureza coletiva do estilo e demonstra que o
eu orgulhoso do artista é na verdade um nós.



O artesão não se define em termos de nacionalidade ou de religião. Ele não é fiel a uma idéia, nem mesmo a uma imagem, mas a uma disciplina prática: seu trabalho. Sua oficina é um microcosmo social governado por suas próprias leis especiais. Seu dia de trabalho não é ditado rigidamente por um relógio de ponto, mas por um ritmo que tem mais a ver com o corpo e sua sensibilidade do que com as necessidades abstratas de produção. Enquanto trabalha, ele pode conversar com outras pessoas e até desatar a cantar. Seu chefe não é um executivo invisível, mas um homem de muita idade que ele tomou como mestre, quase sempre um parente, ou pelo menos um vizinho. É revelador notar que, apesar de sua natureza marcadamente coletiva, a oficina de um artesão nunca serviu de modelo para nenhuma das grandes utopias do Ocidente. Da Cidade do Sol, de Tommaso Campanella, passando pelos falanstérios de Charles Fourier, até as coletividades comunistas da era industrial, o protótipo do que seria o homem social perfeito nunca foi o artesão, mas o padre-sábio, o jardineiro-filósofo, o trabalhador universal, nos quais a práxis diária e o conhecimento científico estejam associados. Naturalmente não quero afirmar que a oficina de um artesão seja a imagem da perfeição. Mas acredito que, justamente por causa de suas imperfeições, ela pode indicar uma forma de humanizar nossa sociedade: suas imperfeições são dos homens, e não do sistema. Devido ao seu tamanho físico e ao número de pessoas que a constituem, uma comunidade de artesãos privilegia as formas democráticas de vida em conjunto; sua organização é hierárquica mas não autoritária, tal hierarquia sendo baseada não em poderes, mas em níveis de habilidade: mestres de ofício, artesãos, aprendizes; e o trabalho final dá espaço para o divertimento e para a criatividade. Não bastasse ter nos dado uma lição em sensibilidade e no uso livre da imaginação, o artesanato também nos ensina sobre organização social.

O artesão não busca vencer o tempo, mas participar de sua corrente. Por meio de repetições, que vêm na forma de variações imperceptíveis mas genuínas, seus trabalhos se tornam parte de uma tradição perene. E ao fazê-lo, eles existem por muito mais tempo que o objeto da “última moda”.
...Uma vez que é feita por mãos humanas, a peça de artesanato preserva as impressões digitais – reais ou metafóricas – do artesão que a criou. Essas impressões não são a assinatura do artista; elas não são um nome. Nem são uma marca registrada. Antes, são um signo: a cicatriz quase invisível que denota a irmandade original dos homens, e sua separação. Além de ser feito por mãos humanas, o artesanato também é feito para mãos humanas: não apenas podemos vê-lo, mas tocá-lo com nossos dedos...


Octavio Paz Nobel da Literatura 1990